domingo, 26 de outubro de 2008

PITÁGORAS




PITÁGORAS DE SAMOS (cerca de 580-497 a.C.)
É muito pouco o que conhecemos sobre a vida de Pitágoras. Este indivíduo cedo foi envolvido pelo legendário, de modo que é difícil separar nele o histórico do fantástico. Nasceu em Samos, rival comercial de Mileto. Pelo ano de 540 a.C. deixou sua pátria, estabelecendo-se na Magna Grécia (sul da Itália). Em Crotona fundou uma espécie de associação de caráter mais religioso que filosófico, cujas doutrinas eram mantidas em segredo. Seus adeptos logo criaram novos centros: Tarento, Metaponto, Síbaris, Régio e Siracusa. Participantes ativos da política, provocaram a revolta dos crotonenses. Pitágoras então abandona Crotona, refugiando-se em Metaponto, onde morreu em 497 ou 496 a.C..
Pitágoras não deixou nenhum documento escrito. Seus ensinamentos, transmitidos oralmente, eram rigorosamente guardados em segredo pelos primeiros discípulos que também nada escreveram. Daí a grande dificuldade em reconstituir o pensamento do pitagorismo primitivo e ainda mais o do próprio Pitágoras, distinguindo-o do de seus discípulos. No entanto, o pitagorismo exerceu profunda influência na filosofia grega, quer pela reação polêmica que provocou (Xenófanes, Heráclito, Parmênides, Zenão), quer pelos elementos positivos que passaram aos pensadores posteriores. Ao pitagorismo posterior — com escritos — pertencem Filolau e Arquitas. Podemos considerar com algum grau de certeza que os seguintes aspectos correspondem ao pensamento de Pitágoras:
Afirmou a transmigração das almas (isto é, sua passagem por diferentes corpos, tanto humanos quanto animais) e a reencarnação. Propôs a purificação da alma pelo conhecimento ou pela vida contemplativa, isto é, pela theoria, única que poderia libertar-nos da “roda dos nascimentos”. Atribui-se a Pitágoras a idéia de aumento da sabedoria graças a regras de vida fundadas no silêncio, no isolamento e na abstinência (abstinência sexual, abstinência de certos alimentos, como carnes e favas, e de bebidas fortes). - Segundo os doxógrafos, Pitágoras teria dito que aos Jogos Olímpicos comparecem três tipos de homens: os que vão para comerciar e ganhar a expensas de outros; os atletas, que vão para competir e exibir suas qualidades ao público; e os que vão para contemplar os torneios e avaliá-los. Assim também existem três tipos de almas: as cúpidas, presas às paixões; as mundanas, presas às vaidades da fama e da glória; e as sábias, voltadas para a contemplação.- Por ser um adepto de Apolo Delfo, o deus dos oráculos, considerava que a verdade chega aos homens por inspiração divina e teria dito que a verdade plena ou a sabedoria pertence ao divino, cabendo ao sábio (soÒj) apenas desejá-la e amá-la, ligando-se a ela pelo laço da amizade (il…a). Aquele, portanto, que tem amizade pela sabedoria é filósofo e suaatividade chama-se filosofia. - Como todos os primeiros filósofos, Pitágoras buscou explicar a Úsij através de uma ¢rc» e afirmou que esta era o número. Como teria chegado a essa idéia? Os exercícios espirituais da comunidade pitagórica eram realizados ao som da lira órfica ou a lira tetracorde (lira de quatro cordas), e é muito provável que Pitágoras tivesse percebido que os sons produzidos pela lira obedeciam a princípios e regras para formar os acordes e para criar a concordância entre sons discordantes, isto é, os sons da lira seguem regras de harmonia que se traduzem em expressões numéricas (as proporções). Ora, se o som é, na verdade, número, por que toda a realidade — enquanto harmonia ou concordância dos discordantes como o seco e úmido, o quente e o frio, o bom e o mau, o justo e o injusto, o masculino e o feminino — não seria um sistema ordenado de proporções e, portanto, número?
A proporção ou harmonia universal faz com que o mundo possa ser conhecido como um sistema ordenado de opostos em concordância recíproca e por isso, assim como Pitágoras foi o primeiro a falar em iloso…a, foi o primeiro a falar no mundo como kÒsmoj.
- Porque o mundo seria regido pelas mesmas leis de proporcionalidade que as das cordas da lira, Pitágoras teria dito que há uma música universal e que não a ouvimos porque nascemos e vivemos em seu interior e não possuímos o contraste do silêncio que nos permitiria ouvi-la. No mundo, as cordas da lira são as esferas celestes, onde se encontram os astros, e a esfera terrestre, onde nos encontramos. A música ou harmonia universal é a relação proporcional e ordenada entre as esferas ou entre o céu e a terra.
- A natureza numérica da Úsij ou a estrutura harmônica do mundo ou kÒsmoj está presente em todas as coisas e também na alma, uc». Segundo os doxógrafos, Pitágoras e seus discípulos teriam dito que “a alma é harmonia” (portanto, unificação de muitos elementos e concordância dos contrários ou discordantes). Justamente por ser constituída pela mistura de muitos elementos discordantes, a alma precisa buscar a concordância entre eles e fazer com que os elementos superiores dominem os inferiores. Pitágoras afirmava também o poder terapêutico da lira sagrada de Orfeu porque a harmonia de seus sons auxiliava o esforço da alma para ser, ela também, harmonia, estabelecendo a justa proporção entre os contrários que a constituem. Há, portanto, em Pitágoras, uma ética deduzida da cosmologia.
PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE II)
O que sabemos sobre o pitagorismo nos vem de fragmentos deixados por pitagóricos como o médico Alcmeão de Crotona e os matemáticos Filolau de Crotona e Arquitas de Tarento, assim como por referências de Platão e Aristóteles, e pela doxografia. Ao afirmar que os pitagóricos foram os primeiros a fazer avançar as matemáticas, em sua Metafísica, 1, 5, Aristóteles afirmou a opinião de todos os antigos de que os pitagóricos foram, de certa maneira, os criadores da geometria
como ciência das figuras, volumes e superfícies e os primeiros a estabelecer relações entre ela e a aritmética ou a ciência dos números.
Para compreendermos o que o pitagorismo quer dizer quando afirma que o número, ou melhor, o Um é a Úsij e a ¢rc», precisamos compreender o que entendem por número. Lembremos que os gregos e romanos representavam os números por letras, pois os algarismos, tais como os conhecemos, foram inventados pelos árabes; e Euclides, o grande sistematizador da matemática grega, em seus Elementos — escrito por volta de 300 a.C. — representava os números por letras e linhas. Lembremos também que gregos e romanos desconheciam o zero e que este também foi concebido pelos árabes. Primitivamente, os gregos representavam os números por pontos arranjados em desenhos simétricos e facilmente reconhecíveis, como em cada face de um dado ou em peças de
dominó. Essa representação tinha a seguinte peculiaridade: os números não eram concebidos numa seqüência — 1, 2, 3, ... — obtida pelo acréscimo do 1 a cada número da série; mas eram
concebidos cada qual como uma unidade discreta e independente, ou seja, havia o 1, o 2, o 3, o 4, etc.. Os pitagóricos, porém, inventaram a representação aritmético geométrica dos números, distribuindo-os em figuras. Graças a essa nova maneira de representação, puderam: 1. definir a
unidade (mon£j); 2. tomar os números como seqüência ordenada; 3. distinguir os elementos constitutivos dos números, isto é, distinção entre o par (o divisível ou ilimitado) e o ímpar (o indivisível ou limitado); 4. diferenciar pontos e superfícies, chamando aos primeiros de “termos” (ou limites) e às segundas de “campos” (ou lugares). Ao que tudo indica, o início dessa invenção foi o estudo de uma figura que o pitagorismo julgava sagrada, a tetraktÚj (tetráktys ou tetráktys da década), isto é, a representação do número 10 (ou da década) por um triângulo eqüilátero em que cada lado é constituído por 4 (tetras) pontos, com um ponto no centro: Lembremos que o ponto de partida dos pitagóricos foi o estudo da lira tetracorde, isto é, a lira de quatro cordas. Ora, a
tetráktys da década (ou a década constituída pelos lados de quatro pontos) é considerada sagrada e perfeita porque possui características que nenhum outro número possui: 1. é igual à soma dos quatro primeiros números (1+2+3+4), ou, na linguagem pitagórica, é a síntese da unidade, da díada, da tríada e da quadra; 2. inclui uma quantidade igual de números pares e ímpares (4 pares — 2, 4, 6, 8; e 4 ímpares — 3, 5, 7, 9), e par ou ímpar são os elementos definidores de um número, de tal maneira que a tetráktys da década contém num só número os divisíveis e os indivisíveis em mesma quantidade ou em harmonia; 3. contém todas as figuras: o 1 é o ponto, o 2 é a linha, o 3 é o triângulo, o 4 o quadrado, etc.. A perfeição da tetráktys da década fez com que fosse tomada como critério de todas as operações matemáticas, dando origem ao que viríamos a conhecer com o nome de “sistema decimal”.
PITÁGORAS DE SAMOS (PARTE III)
A Úsij está presente em todas as coisas, tanto as visíveis quanto as invisíveis: assim, a unidade é a inteligência, pois é sempre idêntica a si mesma; a díada é a opinião, pois sempre dividida entre dois; a tríada é a justiça, pois é a síntese da unidade e da díada, isto é, da identidade e da divisão, uma vez que resulta da soma dos dois primeiros números. E assim por diante. Dizer que a Úsij e a ¢rc» são o número é dizer que as coisas são ritmos, proporções, relações, somas, subtrações, combinações e dissociações ordenadas e reguladas. Em outras palavras, o número não representa nem simboliza as coisas, ele é a estrutura das coisas. Ou, como dirá Galileu ao criar a física moderna, só conheceremos a natureza se conhecermos sua estrutura matemática.
De acordo com Aristóteles e Estobeu, os pitagóricos (e, mais precisamente, Filolau de Crotona) conceberam o Um, ou a unidade primordial, a partir da distinção entre ilimitado e limitado, ou entre indeterminado e determinado, isto é, entre o indivisível e o que pode ser indefinidamente dividido. Essa distinção aparece com a diferença entre o ímpar (limitado, determinado, indivisível) e o par (ilimitado, indeterminado, divisível), que são os elementos constitutivos de todos os números, e, por isso mesmo, o Um, fonte dos números, é, em si mesmo, par-ímpar, ilimitado-limitado. O Um ou a unidade é, portanto, a totalidade dos números e, por isso mesmo, a totalidade das coisas visíveis e invisíveis. A unidade é o princípio da permanência ou da identidade de uma coisa e a dualidade é o princípio de sua mudança, de seu devir ou vir a ser.
Dessa maneira, o kÒsmoj é a proporção regulada de pares de opostos, ou a concordância dos discordantes: altobaixo, direita-esquerda, macho-fêmea, movimento repouso, quente-frio, seco-úmido, luz-treva, doce-amargo, bom-mau, justo-injusto, verdadeiro-falso, grande pequeno, novo-velho, reto-curvo. O princípio desses pares é a oposição fundamental entre limitado e ilimitado, ou
entre unidade e multiplicidade. Alguns testemunhos doxográficos também atribuem a Alcmeão e a Filolau uma teoria do conhecimento, isto é, uma teoria da alma humana como capaz de conhecer a estrutura numérica do mundo. O número seria o princípio do conhecimento porque ordena e organiza a realidade ao engendrar as coisas como unidade e diversidade de proporções inteligíveis, pois não devemos esquecer que, em grego, proporção se diz lÒgoj (e, em latim, se diz ratio, razão). O número, segundo Filolau, torna as coisas discerníveis umas com relação às outras, as torna conhecíveis, ou, em sua linguagem própria, “torna as coisas concordantes com a alma”, concórdia ou proporção que decorre do fato de que a alma também é número. Ou, na liguagem de Filolau, as coisas e a alma são comensuráveis (proporcionais) porque possuem a mesma medida comum ou o mesmo lÒgoj, pois são feitas da mesma Úsij. Conhecer é encontrar a unidade de alguma coisa e o princípio de sua mudança ou de seu devir. O número é o que produz a unidade e a diversidade das coisas e por isso as torna conhecíveis por nossa alma. Eis por que o ideal contemplativo ou teórico do pitagorismo se realiza plenamente com uma cosmologia matemática. A matematização do universo concebida pelos pitagóricos lhes permitiu explicar a origem de todas as coisas por um processo regulado e inteligível de delimitações do uno primordial ilimitado segundo proporções que diferenciam os opostos e os dispõem numa ordem racional. Dessa maneira, o pitagorismo pôde
introduzir com todo o rigor a idéia de ordem ou de kÒsmoj porque determinou o operador da ordenação — o número —, a forma da ordenação — proporção — e o efeito da ordenação — concordância e harmonia dos contrários governados pelas mesmas leis racionais.
No entanto, o pitagorismo passará por uma crise profunda que levará ao desaparecimento de sua Escola, ainda que não ao de seus ensinamentos principais, que seriam retomados, dois séculos depois, por Platão. Essa crise os dividiu em dois grandes grupos: os acústicos ou acusmáticos, de um lado, e os matemáticos, de outro. Acusmáticos foram os que conservaram apenas os ensinamentos orais (ou aprendidos por ouvido) de caráter místico e moral da Escola, realizando exercícios espirituais silenciosos de purificação da alma, ao som da lira órfica. Matemáticos foram aqueles que tentaram dar prosseguimento à doutrina cosmológica e à geometria, após a crise. Que crise foi essa? O aparecimento de um teorema que, justamente, leva o nome de Pitágoras: “num triângulo retângulo, a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”. Do ponto de vista geométrico, a demonstração do teorema é clara e perfeita: o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Há, portanto, proporção entre os catetos e a hipotenusa.

Nenhum comentário: